História da Ressuscitação

A preocupação com a morte é uma questão eterna e universal.

Desde o início da história do homem, a morte esteve envolta em uma atmosfera mística e mágica. A tentativa de reverter a morte era considerada como um feito impossível, uma verdadeira blasfêmia do ponto de vista científico e religioso.

Somente no século 18, começou-se a considerar a possibilidade científica de que a ressuscitação seria possível. Foram necessários outros duzentos anos até que as manobras de ressuscitação fossem desenvolvidas e somente nos idos dos anos 60, tornou-se uma realidade. As causas de morte súbita foram se modificando com o decurso do tempo. Na era pré-moderna as causas principais de morte súbita eram os casos de afogamento, trauma e outras menos importantes. Atualmente a morte súbita é causada mais frequentemente por doença coronariana em decorrência da fibrilação ventricular.

A ressuscitação é uma preocupação tão antiga quanto o homem. Na Bíblia temos o relato da reanimação praticada pelo profeta Eliseu no filho da mulher Sunamita, na qual foi efetuada a respiração boca-a-boca (II Reis 4:34).
Galeno de Pérgamo foi indubitavelmente um dos que mais contribuíram para o início da união da medicina com a ciência. Galeno viveu na Grécia entre os anos de 130 e 200 DC e seus escritos influenciaram notavelmente a medicina dos 1300 anos que se seguiram. Escreveu mais de 22 volumes com tal magnitude de importância que seu trabalho e sua contribuição foi reconhecido pelo Imperador Romano Marco Aurélio como o “primeiro dos médicos e filósofos” . Para entendermos a visão de Galeno sobre o corpo humano, devemos compreender as crenças científicas ocidentais da época e entrar em um mundo mágico e espiritual predominante naquele tempo. Galeno acreditava que um espírito vital estava presente em todos os objetos animados e que nos seres humanos este espírito se expressava através dos pulmões. Este espírito vital, chamado de “pneuma”, não era exatamente o ar, mas viajava através dos pulmões até o lado esquerdo do coração e passava pelos poros e veias até o lado direito do coração. Até o final do século 18, Galeno foi considerado a máxima autoridade em questões de medicina. Seus experimentos constituíam a base fundamental do conhecimento anatômico e fisiológico. Não existia até então, nenhuma divergência importante do que se conhecia como a “verdade de Galeno”.

Na realidade não foram os erros anatômicos que frearam o progresso científico da ressuscitação. O conceito fisiológico dogmático da crença em um espírito vital e um calor inato, durante séculos, foi à razão pela qual a morte permaneceu como um fenômeno irreversível.

Com a queda do Império Romano em 476 DC, a cultura ocidental entrou em uma época de estagnação intelectual que influenciou decididamente vários aspectos da sociedade incluindo a medicina.
Paracelsus, em 1530, foi o primeiro a utilizar foles de lareira com a finalidade de introduzir ar nos pulmões de vítimas aparentemente mortas. Durante 300 anos foram usadas adaptações desse método por toda Europa.

O primeiro movimento científico que conduziu a mudanças se iniciou na Renascença e alcançou sua máxima expressão no século 18. O trabalho de 2 grandes anatomistas do Renascimento, Andreas Vesalius (1514 a 1564) e William Harvey deram início a derrubada da inviolável “Verdade Galênica”. Em 1543, Andrea Vesalio, de 28 anos de idade, publicou “De Humani Corporis Fabrica”, um tratado de anatomia humana que ia de encontro a teoria Galênica. Este trabalho, baseado na dissecção de cadáveres de criminosos executados, era bastante herético para a época. Vesalio acreditava que somente dissecando o corpo humano poderia ter conhecimento de seu funcionamento. Vesalio descreveu a primeira tentativa de ressuscitação em coração de cachorro. Usou traqueotomia e entubação traqueal junto com foles para expandir os pulmões, simulando a respiração natural.

Setenta e cinco anos depois, o médico Inglês William Harvey continuou com o trabalho de Vesalio e foi o primeiro a nos dar a descrição detalhada e definitiva do sistema circulatório. Em 1628, publicou seu trabalho sobre circulação sanguínea: “Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus”. Conhecido por nós como “Motu Cordis”, tinha somente 72 páginas, e constituiu uma revolução na medicina e na biologia.

A era Renascentista embora tenha significado o despertar de uma importante atividade intelectual, se desenvolveu dentro de conceitos e crenças do cristianismo. A ciência ortodoxa da época considerava que ao morrer o espírito tinha de ser julgado, e esta “vontade de deus” não podia ser contrariada. A possibilidade de tentar uma ressuscitação era considerada uma blasfêmia.

Passamos ao século 18, onde a aceitação do conhecimento do corpo humano tornou-se mais aceita, e com ela a necessidade de desenvolvimento de métodos científicos que levassem ao conhecimento, em um período chamado “Iluminismo”. Os líderes intelectuais da época proclamaram que o mundo podia ser mais bem entendido através da ciência e que os meios para chegar a verdade eram os métodos científicos. Os quatros principais componentes da ressuscitação (respiração, compressão-circulação, fenômeno elétrico e serviços de emergência) começaram a ser conhecidos e desenvolvidos. Na época, as mortes que ocorriam inesperadamente (morte súbita) eram as que mais provocavam ansiedade e desespero. A causa mais freqüente na época era o afogamento. O homem tentava restaurar o calor e a vida ao corpo frio e inerte, aplicando objetos quentes sobre o abdome ou chicoteando-o com urtiga ou outros instrumentos.

No período compreendido entre, o século 18 e o século 20, diversos métodos manuais de reanimação foram utilizados, alguns até como rituais. O índio norte-americano enchia a bexiga de um animal com fumaça e depois passava a espremê-la no reto da vítima afogada.

Esses métodos, na sua maioria visavam insuflar ou desinsuflar os pulmões, manipulando o tórax e/ou o abdome da vítima. A maioria, porém, sem conhecimento fisiológico adequado, raramente resultava em sucesso.
Uma das primeiras citações sobre a utilização da respiração boca-a-boca na ressuscitação apareceu no ano de 1744. Um cirurgião Escocês, William Tossach, utilizou a manobra para reanimar com sucesso uma vítima asfixiada por inalação por fumo.

O primeiro esforço organizado na luta contra a morte súbita foi realizado em Agosto de 1767, na cidade de Amsterdã (Holanda), com a criação da “Maatschappij tot Redding van Drenkelingen” (Sociedade para Recuperar vítimas de afogamento – existente até o dia de hoje). As sociedades de resgate de afogados se difundiram rapidamente por toda Europa, assim como nos EUA. Estas Sociedades tinham como objetivo principal encontrar o caminho para a ressuscitação com êxito e começaram a difundir informações sobre os cuidados na recuperação de vítimas de afogamento e outros tipos de asfixia.

Quatro anos depois de iniciado o trabalho da Sociedade em Amsterdã, 150 vítimas de afogamento haviam sido salvas seguindo às recomendações (guidelines) da época:

a) Aquecer a vítima (se faz até hoje)
b) Remover roupas molhadas (se faz até hoje)
c) Drenar água dos pulmões posicionando-se a vítima com a cabeça mais baixa que os pés (parou-se de fazer em 1993).
d) Estimular a vítima com técnicas tais como instilação de fumaça de tabaco via retal ou oral (feito até 1890).
e) Utilizar o método de respiração boca-a-boca (se faz até hoje)
f) Sangrias (parou-se de fazer há mais de 60 anos).

Não havia na época um limite de tempo para a reanimação, considerando-se 6 horas um tempo razoável para o esforço de ressuscitar.
Com a intenção de retirar a água, posicionava-se a vítima de afogamento com a cabeça mais baixa que o tronco. Na tentativa de melhorar esta manobra foi adicionada a pressão do tórax, de forma a aumentar a saída desta água. Desta maneira nascia de forma espontânea e ao acaso a ventilação artificial indireta. Muitas vidas foram salvas desta forma. Fazia-se o certo por razões erradas.
Em 1817, um médico Inglês, professor de medicina, Marshall Hall (1790 a 1857) publica seu livro, intitulado “Handbook of National Science of Medicine for Theologist”, no qual a compressão cardíaca e a respiração boca-a-boca eram preconizadas como métodos de reanimação. Foram feitas várias considerações como: perda de tempo no transporte da vítima; a tentativa de restaurar a temperatura sem fazer ventilação artificial era perigoso e ineficaz; a exposição da vítima ao ar fresco era um benefício e o fato de a posição supina bloquear as vias aéreas com a queda da língua sobre a faringe. Surgiu então a proposta de alternar a posição do corpo, abaixando-o e elevando-o alternadamente, 15 vezes por minuto, conseguindo-se volumes de ventilação (70 a 240 ml) que poderiam recuperar uma vítima.

Pouco tempo depois, Henry Silvester sugeriu elevar os braços da vítima sobre sua cabeça, de forma a expandir desta maneira a caixa torácica facilitando a entrada de ar aos pulmões, e em seguida o socorrista colocava as mãos da vítima e as suas por sobre o peito do afogado de forma a comprimir o tórax e exalar o ar.
Benjamin Howard, um médico de Nova York, criticou as manobras de Hall e Silvester e descreveu seu próprio método, conhecido como método direto. Colocava-se a vítima sobre uma elevação e enquanto um ajudante segurava a língua, o ressuscitador realizava pressão, iniciando no abdome superior até o tórax em uma frequência de 15 vezes por minuto.

Em 1884, Braatz sustenta a recomendação da compressão cardíaca e respiração artificial como método de tratamento da parada cardíaca.

Em 1890, a “Royal Lifesaving United Kingdom” (Sociedade de Salvamento aquático do Reino Unido – existente até hoje e responsável pelo salvamento aquático na Inglaterra) formou um comitê para avaliar as técnicas existentes. O presidente do comitê, Edward Schafer, considerou todas as manobras ineficientes e criou uma nova manobra técnica chamada de “Prono-pressão”. Apesar de toda oposição que teve, a Cruz Vermelha Americana começou a ensina-la em 1910 (20 anos após). O método de Schafer, tornou-se muito popular devido a sua simplicidade de aplicação, requerendo apenas uma pessoa. Consistia em realizar a expiração ativa e a inspiração passiva e ficou conhecido como método indireto de ventilação artificial.

Existiam amplas variações geográficas na mecânica de seu método de ventilação artificial. O método de Silvester teve maior difusão na Alemanha, Holanda e Rússia, enquanto o método de Schafer se desenvolveu principalmente na Inglaterra, França e Bélgica e os países Americanos.

Na Dinamarca, em 1932, o Coronel Holger Nielsen desenvolveu seu próprio método que combinava as melhores partes das duas técnicas.

No Brasil, com seu grande litoral em praias e com o turismo desenvolvido na Cidade do Rio de Janeiro, o processo de desenvolvimento da ressuscitação acompanhou de forma semelhante o que ocorreu em todo mundo (foto de ressuscitação de afogado na praia de Copacabana em 1952).

Todos os métodos de ventilação indireta (Schafer, Holger-Nielsen, Marshall Hall, Howard, Silvester, e outros) foram idealizados com 2 propósitos principais: a ventilação artificial e a retirada de água do pulmão nos casos de afogamento. Todos tiveram grande sucesso no princípio do século e certamente ressuscitaram muitas vítimas da morte. Todos eles utilizavam o princípio contrário a fisiologia do organismo, onde a inspiração era passiva e a expiração era ativa, desta forma o volume corrente (quantidade de ar a cada ventilação) produzido era geralmente inferior ao necessário. Estes métodos são extremamente cansativos para o socorrista e difíceis de serem mantidos além de 5 minutos. Foram baseados na idéia de retirar água do pulmão do afogado, o que hoje em dia se mostra desnecessário e até prejudicial. Foram idealizados antes da noção da compressão cardíaca, sendo possível ainda sim sua realização conjugada, porém com grandes dificuldades em casos de PCR. Nos casos de trauma cervical é impossível a sua realização. Nos casos específicos de afogamento estes métodos indiretos de ventilação não podem ser realizados dentro da água, o que hoje em dia é uma prioridade.

A partir da metade do século 20, com a melhor compreensão da fisiologia aliada a pesquisa, os métodos de ressuscitação foram aperfeiçoados. Diversas conferências sobre reanimação foram realizadas, entre elas a pioneira de 1948, realizada pela “National Academy of Science – National Research Council” (NAS-NRC) (2), promoveram a divulgação e o debate amplo entre sociedades e autoridades médicas, na tentativa da padronização de condutas.

Em 1949, Archer Gordon realizou trabalhos de investigação em estudantes anestesiados, curarizados e entubados. Faz menção a respiração boca-a-boca mas não a realiza. Conclui que, nenhum dos métodos propostos até o momento, nem mesmo suas combinações, ofertam quantidade suficiente de ar (100/500 ml).

James Elam foi o primeiro investigador contemporâneo que demonstrou que o ar expirado através do boca-a-boca era suficiente para manter uma adequada oxigenação. Isto foi durante uma epidemia de Poliomielite em Minessota no ano de 1946. Em viajem de automóvel a Kansas para um congresso médico, foi acompanhado por outro médico que se interessou por sua experiência. Este médico dedicou sua vida a investigação da ressuscitação – Dr Peter Safar. Realizou experiências em voluntários anestesiados que lhe permitiram chegar em 1957 a 3 conclusões principais sobre a respiração boca-a-boca:
1. Simplesmente inclinando a cabeça da vítima para trás se pode abrir as vias aéreas.
2. A respiração boca-a-boca fornece uma excelente respiração artificial.
3. Qualquer pessoa pode aplica-la facilmente e de forma efetiva.
O método boca-a-boca foi adotado pelo exército dos EUA em 1957 e pela Associação Americana de Medicina (AMA) em 1958. Nesta época, o médico Brasileiro Dr John Cook Lane, contribuiu efetivamente para a pesquisa e difusão destes métodos em nosso país.

A compressão cardíaca – No ano de 1883 o Dr. Franz Koenig propõe em seu livro, a compressão torácica como técnica para ventilar um paciente de forma artificial. Embora na posição correta para a compressão cardíaca, ele a descreve para outro fim. Seu assistente, o Dr. Friederich Maass, durante a cirurgia de um jovem de 18 anos que havia tido uma parada cardíaca durante a indução anestésica, inicia as manobras antes descritas, a princípio lentamente, simulando o ritmo ventilatório. Diante a falta de resposta aumenta a freqüência, chegando a 120 compressões por minuto, e observa que o pulso carotídeo se recupera, e em alguns minutos o paciente se encontra bem.

Em 1901, Kristian Igelsrud recuperou uma paciente com massagem cardíaca interna ao final de uma anestesia, com recuperação em 1 minuto. O primeiro caso Americano de massagem cardíaca (como era denominado até poucos anos atrás) fechada ocorreu em 1904, quando o Dr George Crile ressuscitou uma mulher de 28 anos de idade cujo coração parou durante o ato cirúrgico.

Não se tem conhecimento do porque as técnicas de compressão cardíaca não foram mais difundidas. Talvez porque, a parada na respiração a princípio, parecia mais evidente e por esta razão deve ter sido mais investigada. Na realidade a técnica de compressão torácica na circulação artificial foi simplesmente ignorada até o início dos anos 60 quando foi redescoberta.

O redescobrimento parece ter sido acidental no laboratório do Dr. William Kouwenhoven na universidade John Hopkins em Baltimore. Junto com os Drs. Guy Kinckerbocker e James Jude, descrevem a massagem cardíaca após uma série de observações. Publicam seus resultados sobre 20 casos de parada cardiorrespiratória intra-hospitalar no ano de 1960 na revista JAMA (Journal of American Medical Association).

Entre os anos de, 58 e 61, a respiração se combinou finalmente com a circulação artificial (compressão cardíaca): Nascia a Ressuscitação Cárdio-Pulmonar – RCP. Iniciasse assim uma nova época onde a campanha anuncia “qualquer um, em qualquer lugar, pode iniciar a Ressuscitação Cárdio-Pulmonar – RCP”. Houve então um período de demonstrações por todo mundo onde, Safar, Kinckerbocker, e Jude explicariam que “as duas técnicas não deviam ser consideradas como unidades separadas e sim que ambas formavam parte de um mesmo “procedimento salvador”.

No ano de 1962, Gordon e Adams produzem um filme de treinamento de 27 minutos chamado “O pulso da vida”. Este filme foi utilizado em cursos de RCP por todo mundo e visto por milhões de estudantes. Para aumentar o aprendizado foi utilizada chave mnemônica para a ordem das manobras. Estava criado o “ABC da Vida”. A – Abrir as vias aéreas (Airways), B – Boca-a-boca (Breath), e C – Circulação (circulation) explicando a seqüência completa da RCP.

Por volta de 1960, Laerdal desenvolveu manequim de treinamento em RCP. O rosto da manequim, foi inspirado no busto de mulher desconhecida que morreu afogada em 1930 no rio Sena. O nome da mulher nunca foi identificado, e a maniquim recebeu o nome de “ANNE”, e é mundialmente conhecida como “resusci-anne”.

No ano de 1966, as recomendações são reconhecidas pela “American Heart Association” – AHA e Cruz Vermelha Americana, e finalmente publicada em definitivo, e de forma completa, na JAMA.

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Dr David Szpilman

Dr David Szpilman - Sócio Fundador, Ex-Presidente, Ex-Diretor Médico e atual Secretário-Geral da SOBRASA; Ten Cel Médico RR do CBMERJ; Médico do Município do Rio de Janeiro; Membro do Conselho Médico e Prevenção da International Lifesaving Federation - ILS; Membro da Câmara Técnica de Medicina Desportiva do CREMERJ. www.szpilman.com