"Caçador de crocodilos morre ao ser atacado
por raia"
A notícia acima, veiculada hoje nos
principais portais de internet, pode promover junto ao público leigo uma
noção absolutamente errada a respeito do comportamento das raias e seus
possíveis acidentes. Como biológo marinho e diretor do Instituto Ecológico
Aqualung, acredito ser importante fornecer informações pertinentes sobre o
assunto de modo a esclarecer os fatos.
Conhecido como o "Caçador de
Crocodilos", o apresentador de TV australiano Steve Irwin era famoso por se
aproximar demais dos animais selvagens quando captava imagens para seus
documentários. Um de seus muitos "espetáculos", que sempre geravam polêmica
mundo afora, foi dar de comer a um gigantesco crocodilo enquanto segurava
seu filho recém-nascido nos braços. Nessa segunda-feira, quando filmava cenas submarinas para
um novo documentário, na praia de Port Douglas, na Austrália, Irwin foi morto
por uma raia. Ferido no peito pelo animal, chegou a ser socorrido por
paramédicos, mas foi considerado morto no local do acidente. De acordo com o
produtor de seus programas, "Steve segurou uma raia e o barbilhão entrou no
peito dele, abrindo um buraco no coração". Provavelmente, foi uma raia-prego (do
gênero Dasyatis) que ao ser manipulada de forma irresponsável penetrou
seu aguilhão no tórax e inoculou peçonha no coração do
apresentador.
Grande parte
das raias costuma passar quase todo o dia em repouso na areia, onde algumas
se enterram. As espécies potencialmente perigosas possuem em sua cauda
um aguilhão (às vezes mais de um ao mesmo tempo) que pode inocular uma potente
peçonha. O aguilhão é um grande espinho retroserrilhado e pontudo composto de um
duro material semelhante ao osso coberto por uma fina camada de tecido,
onde estão inseridas algumas glândulas produtoras de peçonha.
Quando o animal está tranqüilo e em repouso,
o aguilhão fica encostado paralelo à cauda, acondicionado em uma dobra
membranosa e imerso em muco e peçonha produzidos pelas glândulas da epiderme. Ao
ser perturbada ou estressada, a raia costuma dar violentas "chicotadas" com sua
cauda. Nesse momento, seu aguilhão adquire uma posição perpendicular à cauda e,
ao atingir sua vítima, provoca ferimentos profundos e graves com inoculação de
peçonha.
No entanto, quando não molestadas, as raias são totalmente
inofensivas e incapazes de atacar ativamente quem quer que seja. Para
que ocorra um acidente, é necessário que a raia sinta-se muito ameaçada ou
acuada, pois ao menor sinal de perigo ela costuma afastar-se do local com
extrema rapidez. Cerca de 99% dos acidentes com raia são provocados por
pescadores que insistem em capturá-las, e no ato de dominá-las ou retirá-las da
rede ou anzol são atingidos pelo aguilhão, ou mergulhadores inconseqüentes
que acham que podem acariciá-las ou molestá-las até o limite do insuportável,
como se elas fossem um animal doméstico e bobo. Apenas 1% ocorre por
acidente, quando alguém inadvertidamente, ao desembarcar de suas lancha na praia
por exemplo, dá uma "pisada" em uma
raia que esteja repousando na água rasa.
Os acidentes com as raias têm dois aspectos
médicos importantes cujos efeitos costumam atuar em conjunto: o trauma provocado
pela penetração do aguilhão retroserrilhado e a inoculação da peçonha,
facilitada pela lesão. O trauma provocado pelo aguilhão é puntiforme ou
lacerante, muitas vezes profundo, e pode ocasionar graves conseqüências, muitas
vezes com abundante sangramento. Além dos danos extensos e dolorosos, o aguilhão
ou pedaços dele podem destacar-se da cauda da raia no momento da penetração e
permanecer na lesão, ocasionando complicações futuras. As peçonhas de todas as raias são similares e contêm
várias substâncias tóxicas cujos efeitos sistêmicos costumam afetar os sistemas
cardiovascular e respiratório. Além disso, a peçonha possui uma poderosa ação
local de necrose tecidual. A dor, imediata, intensa e persistente, com
características cortante, pulsátil, espasmódica ou latejante é o sintoma inicial
predominante. É seguida, usualmente, por alguns dos sintomas gerais,
como hipotensão ou hipertensão arterial, arritmias, dor de cabeça, dores
abdominais, náuseas, vômitos, febre, sudorese, tremores, fraqueza, vertigem,
convulsão, linfangite, parestesia, paralisia muscular e choque, podendo até
ocorrer o óbito. Embora as lesões ocorram com maior freqüência nos membros, há
casos registrados de lesão no tórax com fatalidade. A penetração do aguilhão em
qualquer parte do tronco ou cabeça é considerada uma grave emergência médica
devido às hemorragias internas não controladas, à inexorável necrose tecidual
das vísceras ou órgãos vitais atingidos e inoculados com peçonha e à infecção
secundária.
Fatalidades como essa que ocorreu com o
apresentador de TV australiano Steve Irwin são raras, mas mostram o quanto
devemos ter respeito e cuidado ao interagir com esses e outros animais
selvagens. O tipo de programa de televisão que o apresentador fazia, que
tem sido copiado inclusive no Brasil, utiliza-se do domínio, manipulação e abuso
de animais com o objetivo de mostrar o quanto corajosos são seus protagonistas.
Ao contrário do que supostamente pretendem, além de se colocarem em perigo real,
deseducam os telespectadores e mostram um grande desrespeito pela
natureza.
*Marcelo Szpilman,
Biólogo Marinho formado pela UFRJ, com Pós-Graduação Executiva em Meio Ambiente
(MBE) pela COPPE/UFRJ, é autor do livro GUIA AQUALUNG DE PEIXES, editado em
1991, de sua versão ampliada em inglês AQUALUNG GUIDE TO FISHES, editado em
1992, do livro SERES MARINHOS, editado em 1998/99, do livro PEIXES MARINHOS DO
BRASIL, editado em 2000/01, do livro TUBARÕES NO BRASIL, editado em 2004, e de
várias matérias e artigos sobre a natureza, ecologia, evolução e fauna marinha
publicados nos últimos anos em diversas revistas e jornais e no Informativo do
Instituto. Atualmente, Marcelo Szpilman é diretor do Instituto Ecológico
Aqualung, Editor e Redator do Informativo do citado Instituto, diretor do
Projeto Tubarões no Brasil (PROTUBA) e membro da Comissão Científica Nacional
(COCIEN) da Confederação Brasileira de Pesca e Desportos Subaquáticos
(CBPDS).
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