Salvador, 17 de Maio 2005
Meio-ambiente
Maré de lixo globalizado
Detritos de vários países descartados por navios que passam
pelo litoral poluem a costa por culpa da legislação portuária do
Brasil
Regina Bochicchio
Dia 27 de fevereiro de 2001. Cinco e
meia da manhã. O surfista decide sair de Guarajuba até a Barra do Tariri (Linha
Verde) durante cinco dias de verão. Pega um ônibus até Praia do Forte e, de lá,
segue a pé pela areia. No corpo, nada mais que uma sunga. Na bagagem, uma
barraca de camping e uma mochila. Palmilhar o caminho de areia é um prazer para
ele, também mergulhador. Depois de passar pelos points de surfe de Praia do
Forte, não há mais ninguém. Só se vêem os coqueiros e o mar.
À medida que
alguns quilômetros de praia são vencidos, a boca fai ficando seca. E a sede
aumenta. A garrafa azulada de água mineral é logo retirada do interior da
mochila. Mas um gesto estouvado a deixa cair no chão. A tampa se desprende num
movimento brusco. E o andarilho vê a água ser sugada com rapidez pela areia
quente. Disposto a matar a sede o mais rapidamente possível, ele pensa em
escalar o primeiro dos muitos coqueiros que vê pela frente. A imagem da água de
coco fresca hidratando a garganta contrasta com a areia fofa e quente sob seus
pés.
Foi precisamente nesse momento, quando planejava galgar o coqueiro,
que Fabiano Prado Barreto, 30 anos, avistou um objeto que, mal sabia ele, seria
o pivô de uma grande idéia que viria a mudar a sua vida. Era uma outra garrafa
plástica, vazia, de água mineral, cujo rótulo dizia ser fabricada na Indonésia.
Achou curioso e levou-a consigo. Pouco mais adiante, em busca do coqueiro que
pudesse ser escalado, ele encontra outra garrafa de água mineral, desta vez da
Coréia do Sul. Parecia até uma pegadinha de TV – mais alguns metros depois,
outra garrafa com rótulo da Tailândia.
O tempo parou por um instante na
cabeça de Fabiano. Ele olhou para o oceano e percebeu que aquele lixo só poderia
ter sido trazido pelo mar, através das correntes marinhas e das ondas. E mais:
os detritos só poderiam ter sido jogados pelas centenas de navios que cruzam a
costa brasileira. Achou um saco semi-enterrado na areia e começou a enchê-lo com
o lixo estrangeiro que foi encontrando pela frente.
No percurso de 10 km
entre Praia do Forte e Imbassaí, coletou 88 embalagens, produtos diversos de 26
países diferentes: água mineral, leite, refrigerante, inseticida, alimentos,
produtos de beleza, produtos de manutenção de máquinas, entre outros. De onde?
Malásia, Índia, Grécia, Bélgica, Argentina, Austrália, França, China, Indonésia,
Alemanha, Itália, África do Sul, Coréia do Sul, Tailândia, dentre
outros.
Seguiu a força da intuição. Não sabia bem o que fazer com aquilo,
mas sentiu que tinha algo importante em mãos. Dormiu numa pousada em Imbassaí e
pediu aos funcionários do estabelecimento que guardassem seu “material”.
Pretendia vir buscá-lo após uma semana. E foi o que fez. Sete dias depois,
voltou à pousada, pegou o material, catalogou-o e fotografou-o. Procurou ainda
jornais em Salvador e São Paulo a fim de publicar a história do seu achado. A
empreitada estava apenas começando, havia ainda muitos frutos a serem
colhidos.
Fotos denunciam poluição ambiental
Dois mil e
quatro. Três anos se passaram após a descoberta do lixo estrangeiro na jornada
de Guarajuba a Barra do Tariri. Fabiano Prado, então com 33 anos, é um dos que
tocam a organização não-governamental alemã Local Beach, Global Garbage, cujos
projetos são financiados pela Lightouse Foundation, na Alemanha.
Fabiano
já morava em Portugal, no ano de 2001. Na época em que decidiu fazer a
caminhada, estava em férias na Bahia, visitando a família. A idéia de denunciar
a poluição das praias brasileiras pelos detritos de outros países foi
amadurecida com o apoio da sua mulher, alemã. Quando contou sobre o lixo e
mostrou o seu trabalho, as idéias foram surgindo.
O primeiro passo foi
uma exposição numa universidade. Depois vieram outras, até que ele foi convidado
a expor na sede do Ministério do Meio Ambiente do país. Fez faculdade e virou
fotógrafo profissional. A princípio, não recebia dinheiro de nenhuma
instituição. Quando perguntavam, dizia que se tratava de uma ação de
retribuição: estava devolvendo ao oceano tudo o que desde criança este lhe teria
dado. Começou a pensar em apoios, coligações. “O meu negócio era a história da
globalização. O que é que a gente tem a ver com o seu lixo?”, eu
pensava.
“Os países ricos difundindo pensamentos ecológicos, entretanto o
lixo deles pára nas nossas praias”, conta ele. Voltou ao Brasil em 2002 e
percorreu o mesmo trecho a pé, mas desta vez coletou o “lixo gringo” de Praia do
Forte até Barra do Tariri: 730 embalagens. Levou um amigo para ajudá-lo.
Fotografou, catalogou, levou para a Alemanha e fez novas exposições. Em 2003,
coletou 524 embalagens. No mesmo ano conseguiu o primeiro apoio financeiro,
vindo da Lighthouse Foundation: 14 mil euros, que deveriam ser utilizados para
nova viagem ao Brasil, nova coleta de lixo, o que deveria resultar numa
exposição fotográfica, com dados que iriam para Tókio (Japão) e Bombaim (Índia),
esta última no Fórum Social Mundial daquele ano.
Foi o que aconteceu. De
lá para cá, os apoios foram renovados, e hoje o projeto de Fabiano tranformou-se
numa ONG. Mergulhando nessa história de lixo de embarcações, Fabiano descobriu
que “o buraco é mais embaixo”, como ele diz. O projeto para o qual se dedica
chama-se “Programa de Identificação das Origens do Lixo Marinho da Costa dos
Coqueiros”, que é a região que compreende todas as praias da chamada Linha
Verde.
Porto local recusa os detritos
O lixo vem dos navios
que navegam pela costa e despejam o material no oceano. As correntes marítimas
do Atlântico trazem o lixo para a costa brasileira. Foram essas mesmas correntes
que trouxeram as embarcações de Cabral para cá. Como primeira estratégia,
Fabiano começou a visitar os portos europeus, com cartazes chamando a atenção
para o tema.
Porém, foi numa “conversa de botequim” com os marinheiros que
ele descobriu a origem do problema.
“Eles me disseram assim: a gente
joga o lixo no mar porque muitas vezes os portos do Brasil não recebem o lixo”.
A ficha caiu. No Brasil, lixo de navio é considerado pela Anvisa do mesmo modo
que lixo hospitalar, uma vez que não se sabe a procedência e pode haver
conseqüências para o país que o recebe.
Por isso é que, por lei, todos os
navios estrangeiros que chegam devem apresentar um documento que mostre onde foi
descartado pela última vez o lixo. O problema é que não há fiscalização. Por
isso também é que os portos devem estar preparados para receber lixo de
embarcações e dar um fim viável nele, diz a lei. Este serviço é pago, feito por
empresas terceirizadas (ou seja, os gastos não são do porto, quem paga é a
empresa dona do navio). Na maioria dos países europeus, sem o aval da
fiscalização, o navio não é liberado. Há penalidades e multas.
No Porto
de Santos, por exemplo, existem empresas terceirizadas que se encarregam de
coletar o lixo dos navios e incinerá-los em Cubatão. O Porto de Salvador não tem
serviço de recepção de lixo de navios. “O que acontece? Eles jogam o lixo no
mar, poluindo e a coisa acaba na praia. Todo aquele lixo que eu coletei”,
continua Fabiano, hoje ativista ambiental. Fabiano zarpou para a Alemanha. Lá
pretende continuar seu trabalho. Mas lamenta pelo fato de que, aqui no Brasil,
as autoridades e órgãos de fiscalização não parecem dar atenção a algo tão
relevante.
Os dez mais
Em 2004, 75 países jogaram 4.126
embalagens no mar. Este foi o saldo do lixo gringo recolhido na costa do Litoral
Norte da Bahia
(Em
embalagens)
USA
15,59%
Alemanha
8,50%
Itália
7,67%
Argentina
7,63%
África
do Sul
6,43%
Espanha
4,18%
Reino
Unido
4,07%
Cingapura
4,03%
China
4,03%
Bélgica
3,49%
Fonte:
Projeto Praia Local - Lixo Global
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